Causas

Causas da Gagueira

No final século XX e início deste novo milênio, com o avanço tecnológico, aspectos relacionados ao funcionamento do cérebro e suas estruturas puderam ser revelados. Este fato teve sua repercussão sobre o que poderia causar a gagueira (Andrews et al., 1983; Wu et al., 1995; Fox et al., 1996; Yairi e Ambrose, 1999; Sommer et al. 2002; 2003; dentre outros), tais estudos têm procurado demonstrar se a gagueira é uma desordem sensorial, motora ou cognitiva.

O objetivo deste texto, no entanto, não é relatar o que pode ser lido de forma abundante em vários artigos, mas trazer uma reflexão que, a meu ver, é bastante pertinente e, muitas vezes, não é apontada pelos pesquisadores. Uma das questões mais instigantes sobre a gagueira é a singularidade quanto à sintomatologia, pois uma gagueira não é igual a outra e cada sujeito tem uma construção histórica em relação ao que causa a sua gagueira. Tenho trabalhado ao longo desses anos escutando os sujeitos que manifestam gagueira e suas famílias e um fato que se apresenta em todos os casos é a queixa entre a dissonância entre os interlocutores. Tal fato provoca uma assimetria discursiva sendo que o sujeito que gagueja percebe no outro uma atitude crítica, de impaciência e pouco caso.

De um modo geral, quando falamos estamos atentos nas idéias que transmitimos, nas reações que nosso interlocutor manifesta e, em alguns momentos na forma como falamos. No entanto, para o sujeito que apresenta gagueira, o mecanismo se inverte e a forma como ele fala passa a ser o ponto central de sua atenção, gerando tensões e desconforto. O que pretendo dizer com este fato, é que a fluência da fala não se processa somente dentro do cérebro ou pela tensão muscular na região oral ou cervical, mas antes disso, no âmbito discursivo. A criança pequena, desde que identifica sua imagem no espelho (Lacan, 1998), por volta dos 18 meses, começa a se reconhecer como alguém separado do outro e, portanto, passa a construir sua individualidade. A partir deste momento, o outro e ela passam a interagir através de trocas discursivas e, portanto, de lugares que serão alçados pelo sujeito. A forma como cada criança construirá suas relações discursivas têm um papel formador em sua dimensão psíquica, no que se refere a como irá se relacionar com as demais pessoas (outros) ao longo de sua vida. Se esta criança é colocada em um lugar de sujeito gaguejante, será a partir desta perspectiva que será falada e que se reconhecerá. Ao mesmo tempo em que ocupa um determinado lugar (“gago”), deixa de se posicionar em outro (“fluente”), desta forma, fica estabelecida uma interdição.

O sujeito que gagueja repete e através da repetição retroage sempre a algo que ficou interditado (Ferriolli, 2005) e que possui ligação com a forma que se relacionou com o Outro, desde a infância. De acordo com Lacan (op. cit.), o inconsciente é estruturado como linguagem e o inconsciente é o discurso do outro, desta forma, a maneira como o outro nos escuta, direciona seu olhar, suas críticas e como participa enquanto interlocutor tem extrema relação com a imagem que construímos sobre nós mesmos.

Dentro deste paradigma, posso afirmar que o clínico deve considerar como fundamental, em um processo terapêutico, a questão da discursividade, tendo condições de compreender que o discurso significa mais do que uma ordem sintática e uma quantificação de hesitações. Para tanto, é importante que os fonoaudiólogos que trabalham com a gagueira tenham sua formação ampliada, voltando-se para outras áreas de conhecimentos. Alguns autores (Bothe e Andreatta, 2004) já referiram a necessidade de um conhecimento interdisciplinar e aplicação de métodos mais qualitativos nas pesquisas relacionadas à gagueira.

*Beatriz Ferriolli: fonoaudiologia clínica Profª Drª do Curso de Fonoaudiologia da Universidade de Ribeirão Preto Coordenadora do Projeto em Fluência da Fala da Clínica Escola da Unaerp

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BOTHE, AK.; ANDREATTA, R. D. Quantitative anda qualitative research paradigms: thoughts on the quantity and the creativity of stuttering research. Advances in Speech-Language Pathology; v. 6, n. 3, September, 2004.
FERRIOLLI, B.H.V.M. Gagueira e Posição-sujeito: uma marca do Interdito. I Ciclo de Palestras sobre a Fluência e seus transtornos: Gagueira e Multidisciplinaridade. PUC- São Paulo, 2005.
FOX, P. T.; INGHAM, J.C.; HIRSCH, T. B.; DOWNS, J. H. (1996). A PET study of the neural systems of stuttering. Nature 382: 158-161.
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zorge Zahar, 1998, p.96-103.
SOMMER, M.; KOCH, M. A.; PAULUS, W.; WEILLER, C.; BUECHEL, C. (2002). A disconnection of speech-relevant brain areas in developmental stuttering. Lancet 60:380-383.
SOMMER, M.; WISCHER, S.; TERGAU, F; PAULUS, W. (2003). Normal intracortical excitability in developmental stuttering. Mov Disord 18:826-830.
WU, J.C.; MAGUIRE, G.; RILEY, G.; FALLON, J.; LACASSE, L. (1995). A positron emission tomography [18F] deoxyglucose study of developmental stuttering. Neuroreport 6:501-505.
YAIRI, E.; AMBROSE, N.G. (1999). Early childhood stuttering. Persistency and recovery rates. J Speech Lang Hear Res 42:1097-1112.