Tratamentos

Contribuições da Análise de Discurso na Clínica da Gagueira

De 16 a 22 de outubro de 2005

Existem tantos tipos de gagueiras como de sujeitos. Cada pessoa compreende sua dificuldade de acordo com perspectivas pessoais e ligadas a sua própria historicidade. No entanto, se adotamos um paradigma positivista é mais fácil enquadrar “as gagueiras” em tipologias pois, desta forma, criam-se protocolos e programas que tratam da gagueira do ponto de vista genérico e não da singularidade dos sujeitos.

O século XXI, certamente, exige do mundo científico outros parâmetros que não sejam aqueles atrelados a uma concepção de ciência que teve seu início no século XIX. De acordo com a concepção científica e filosófica do positivismo criado por Comte (1798 – 1857), toda reflexão deve ocorrer nos limites da análise dos fatos verificados pela experiência (tradição empirista), devendo haver uma relação unívoca entre os fatos objetivos e a linguagem que os considera.

Falar na gagueira como uma patologia ou um distúrbio é o mesmo que tentar enquadrar todos os sujeitos como sendo iguais. Temos consciência de que não existe uma pessoa igual à outra, por mais semelhantes que sejam sempre haverá pontos divergentes. Esta noção é importante para compreendermos o sujeito que gagueja e também a articulação que pretendemos fazer com a Análise de Discurso.

A Análise de Discurso a qual nos filiamos, nasce na França na década de 70 com Michel Pêcheux e sustenta-se sobre três concepções teóricas: a Lingüística pela materialidade do significante; a Psicanálise que compreende o sujeito como sendo mobilizado pelo inconsciente e o Marxismo histórico através da noção de ideologia.

Foi a Lingüística de Ferdinand de Saussure (1916) que nos trouxe a noção do signo lingüístico, de seu valor e sua característica de mutabilidade e imutabilidade. No entanto, foi com Milner (“O amor da Língua”, 1987) que pudemos extrapolar os conceitos de Saussure, pois Milner estudou a língua que é falada pelo sujeito e, portanto, passível de erros, enganos, lapsos e “gagueiras”.

Freud, contemporâneo de Saussure, falou pela primeira vez em inconsciente e estudou sua relação com o discurso de seus pacientes. Porém, foi Jacques Lacan (1901 – 1981) que isolou os registros imaginário, simbólico e real sendo que é a partir dessas noções que podemos compreender muitas das articulações realizadas pelo sujeito a partir da linguagem que o constitui. Outras contribuições notáveis de Lacan dizem respeito aos enunciados preconizados por ele: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” e “o inconsciente é o discurso do Outro”, preconizados por ele. A partir dessas idéias, as reflexões sobre o desejo e falta puderam ser articuladas junto ao sintoma clínico do sujeito e, conseqüentemente, à evolução do processo analítico e a cura do sintoma.

Foi Michel Pêcheux (1938 – 1983), que trabalhou muito bem o conceito de ideologia. Esta se constitui junto com a linguagem, por isso é possível de ser identificada através da materialidade da língua, ou seja, no dizer do e sobre o sujeito. Ideologia, inconsciente e linguagem são constitutivos do sujeito. Neste sentido, a ideologia também poderá ser entendida como o efeito do simbólico e da relação histórica que o sujeito estabelece com o mundo.

Para estudar mais profundamente a gagueira temos que ultrapassar o âmbito da fala do sujeito, enquanto mecanismo articulatório e fonético-fonológico e compreender que esta fala só é possível de ser articulada porque existe um sujeito constituído na e pela linguagem a partir do discurso do Outro. Sendo assim, o processo é de construção de linguagem e não, predominantemente, de produção de fala.

Neste sentido, o discurso do sujeito, assim como de seus familiares, é muito importante na clínica fonoaudiológica da gagueira, pois será a partir do que é mobilizado pelo simbólico no imaginário do sujeito que ele construirá sua própria identidade “gaguejante”.

Nota-se, pelos discursos dos sujeitos gagos, que eles não conhecem simetria discursiva, mas somente assimetria a partir da qual eles se encontram sempre em desvantagem, ou seja, em uma posição de inferioridade em relação à fala do outro. Por isso o medo é o significante presente em, praticamente, todos os discursos de sujeitos com gagueira, pois toda posição de desigualdade remete-nos ao medo e insegurança.

É importante que a discussão sobre a gagueira e o sujeito que apresenta este sintoma, esteja alicerçada pela noção de dialogismo e mediação do adulto para com o outro. Neste sentido, o adulto através de sua linguagem, seus gestos, expressões e atitudes, simboliza para a criança como é o mundo e como funcionam as relações dialógicas, mostrando, predominantemente, uma simetria ou a antítese desta.

Através da linguagem, os pais mostram sua subjetividade e, conseqüentemente, quais são os lugares possíveis de seus filhos existirem enquanto sujeitos da linguagem. Para Bakhtin (1997), os sujeitos sempre são representados pelos seus interlocutores e “saber que o outro pode ver-me determina radicalmente a minha condição”. Os pais representam seus filhos mesmo antes de nascerem (Ferriolli, 2000) e a representação que fazem dessa criança a colocará em determinados lugares discursivos e não em outros, permeando todas as demais relações e opções que esta criança possa vir a ter. A força da determinação é que irá sofrer uma variação, dependendo da liberdade (relativa) que o sujeito conquista em suas relações interpessoais.

Quanto aos procedimentos clínicos, estes deverão ser gravados e/ou transcritos para que certos enunciados sejam retomados em outros momentos. As sessões variam entre 45 e 60 minutos (uma ou duas vezes na semana); o tempo de tratamento dependerá de cada sujeito e da implicação da família no processo clínico, podendo variar entre um mês (crianças no início da gagueira) e dezoito meses. Os materiais utilizados dependem da idade do sujeito e da dinâmica instaurada: brinquedos, livros de estória (contos, fábulas), papel, giz de cera, revistas, jornais (propagandas, crônicas e reportagens), textos da Internet e dramatizações. Em todas as estratégias o que deve predominar são as situações dialógicas e o interesse imediato pelo que o outro diz e/ou propõe. O terapeuta precisa identificar em qual lugar discursivo este sujeito se encontra e modificá-lo através de retomadas do significante, gesto ou de atitudes que se repetem.

Beatriz Ferriolli é fonoaudióloga clínica (CRFa 0160/SP), professora doutora da Universidade de Ribeirão Preto e pós-doutoranda do Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina da USP/Ribeirão Preto.