Gagueira Infantil

Gagueira Infantil

A gagueira infantil ou o infantil na gagueira?

Esta será a principal pergunta deste breve artigo e procurarei respondê-la até o final, abordando a gagueira quanto às possibilidades de compreensão através da teoria psicanalítica. Partindo desta teoria – sem excluir nenhum das outras teorias e abordagens (genéticas, neurofisiológicas ou comportamentais) – começarei a responder à pergunta inicial com outras:

– O que é o infantil na psicanálise? A gagueira é um sintoma? E como tal, qual a sua especificidade na infância? Qual o sentido de sintoma?

Para a psicanálise, o infantil coincide com o Inconsciente. Sendo assim, é no inconsciente que se encontram as marcas de gratificação e frustração vividas nos primórdios de um psiquismo sem palavras, e tais marcas permitiriam o registro de traços mnêmicos (de memória) na forma de re-apresentações das situações vividas de maneira gratificante ou não, as representações. Por gratificação, nesta perspectiva, entenda-se a possibilidade de alívio de tensão e a frustração como o seu aumento.

Freud (1915) pensa o aparelho psíquico como um construto para dar conta da tensão interna que aparece no início da vida em decorrência de necessidades do organismo (fome e sede). Assim, “repetir” os acontecimentos externos (sendo o próprio corpo também externo a esse aparelho), na forma de representações, dá a possibilidade de articular o pensamento e re-criar o que se sofre ou se gosta de acordo com algum controle – mesmo que ideal (de idéias).

O Inconsciente não é visto aqui como o oposto do Consciente, nem a este subordinado na forma de subconsciente, mas como um dos três sistemas do aparelho psíquico, que tem uma lógica própria e condições específicas de funcionamento: Processo primário (condensação e deslocamento) e Princípio de prazer (urgência da satisfação em detrimento da viabilidade de obtê-la).

O psiquismo surgiria do embate de um organismo que urge saciedade com um meio externo que a possibilita ou impede, e surge num ser humano indefeso e totalmente desconhecedor das chances de sobrevivência e de sua existência necessariamente interativa com o outro para que continue vivo. É um aparelho que, rudimentar, não compreende as coisas por oposição ou incoerência e não tem condições de considerar a passagem do tempo (noção temporal) e muito menos pensar de maneira seqüenciada.

A aquisição da linguagem na criança, por volta de 18 a 24 meses, faz surgir novos aspectos no psiquismo que, até então, não se ordenava pela lógica verbal e que agora deve arcar com as regras e ditames da língua falada. Esta aquisição é simultânea ao estabelecimento dos “lugares” das representações no psiquismo: Inconsciente (para tudo o que funcionar de acordo com o Processo Primário e o Princípio de Prazer), Pré-Consciente (lugar das memórias construídas, as lembranças) e Consciente (sistema perceptivo, coincidindo com o eu, age de acordo com o Processo Secundário – considerando a realidade – e o Princípio de Realidade – “agora não, depois”, Princípio de Prazer mais Tempo).

Portanto, é no momento em que a linguagem dá à criança a condição de agenciador da linguagem – que antes lhe atravessava sem sua ação a partir do mesmo lugar de falante – que vemos a divisão entre os sistemas Inconsciente e Consciente. O Inconsciente será o reduto das formas de funcionamento abandonadas e o Inconsciente estaria sempre à espera de reconhecimento do Consciente quanto às tentativas daquele de ser atendido para conseguir gratificação imediata e postergar as frustrações. Em palavras cotidianas, é o “olha pra mim” que toda criança solicita ao adulto, mesmo quando ainda nem anda…

Portanto, o Inconsciente é o infantil, mas nem por isso seriam menos importantes os seus “guardados”, determinantes daquilo que cada um de nós busca no dia-a-dia: gostos e desgostos, preferências e repulsas. Em relação à linguagem, poderíamos dizer que já há um substrato anterior à sua aquisição e que este substrato terá importante interferência naquilo que se diz e fala. Assim, uma primeira resposta à nossa pergunta inicial: a gagueira é infantil por atingir a criança, como diz o nome, mas conserva o infantil (inconsciente) em sua produção. Como?

Todos observamos, corriqueiramente, que há um momento em que as crianças bem jovens, mas já falantes, gaguejam; mais ou menos entre 2 e 4 anos. E isso vem com a surpresa dos pais: “ela já falava tudo direitinho… o que está acontecendo?”. Quando a criança apenas reproduz a fala do adulto, tudo vai bem, mas se vai produzir um enunciado seu, somente seu, hesitações, prolongamentos, aparecem e a tensão de não conseguir falar acaba produzindo mais disfluência.

Scarpa (1998) faz um apontamento importante, dizendo que a disfluência é fruto dos momentos de construção, de elaboração do discurso, o que causaria uma instabilidade lingüística. Seria a gagueira infantil, pois, uma disfluência “normal”? Sendo normal, o que fazer com ela? E se a criança se tornar gaga para sempre?

A gagueira não está na boca da criança, mas no ouvido dos pais, diz Johnson (1941). Suas reações de aflição, silêncio (principalmente o silêncio que finge desinteresse e transpira preocupação) ou reprimendas exercem, na maioria das vezes, pressão comunicativa, que aumenta a tensão e, consequentemente a disfluência. A tensão é a primeira coisa que os gagos, de várias idades, se referem quando mencionam as causas da própria gagueira. Esta tensão por vezes está localizada na boca, outras no maxilar, no queixo ou no diafragma. Bloodstein (1975) assim define que a gagueira pode ser considerada como o que as pessoas fazem quando estão tensas demais sobre como falar ou mesmo o que não fazer para falar melhor.

Voltemos às crianças e seus sintomas, pois há muitos outros na mesma faixa etária em que aparece a “disfluência normal”: fobias, maus comportamentos, birras. É preciso que estejamos atentos, seguindo-se uma orientação psicanalítica, para os sentidos que os sintomas vão adquirindo para os pais, e para as formas de condução/busca de remissão dos sintomas, pois os sintomas também são de ordem discursiva; são sinais de aspectos proibidos ao Consciente, que aparecem camuflados por condensações e deslocamentos de representações. Isto não é diferente com a gagueira. Qualquer aconselhamento ou orientação aos pais deve levar em conta o discurso que permeia a criança e o sintoma da gagueira, na busca de estabelecimento de sentidos.

Em resposta à pergunta inicial, a gagueira, na verdade, é sempre infantil, na medida em que há sempre o infantil (inconsciente) em cada sintoma – seja ele na fala ou não. Como tal, o reconhecimento de seu sentido e valor de revelação das questões subjetivas deve ter lugar e é através de uma escuta acurada para o que está nas linhas e nas entrelinhas do discurso disfluente que se poderá chegar à sua remissão.

BLOODSTEIN, O. (1975). Stuttering as Tension and Fragmentation. In: EISENSON, J. (ed.). Stuttering: a second symposium. New York. Harper & Row.
FREUD, S. (1915). Artigos sobre Metapsicologia. In: Obras Psicológicas Completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro. Imago.
Johnson, W. (1941). An open letter to the mother of a stuttering child. New York: Harper & Row.
Scarpa, E. (1998). Sobre o sujeito fluente. Cadernos de Estudos Lingüísticos, (29), 163-184.

Roberta Ecleide Oliveira Gomes-Kelly
Psicanalista, Psicóloga Clínica, Mestre em Psicologia (PUCCAMP), Doutora em Psicologia Clínica (PUCSP), Pós-doutora em Filosofia da Educação (USP), Docente PUC Minas (Poços de Caldas, MG).