Causas

Gagueira

Sabe-se que a fala envolve componentes verbais e não-verbais processados em diferentes sistemas neurais e que convergem para um sistema comum de saída (Perkins et al., 1991). A fala fluente requer integração e sincronia desses sistemas.

Partindo desse ponto de vista, a gagueira – ruptura abrupta e involuntária no fluxo da fala – representaria uma falha na integração e sincronia dos sistemas neurais que processam os componentes verbais e não-verbais da fala.

Há fortes evidências de um fator genético na etiologia da gagueira e embora os fundamentos neurofisiológicos e neuroanatômicos da gagueira desenvolvimental persistente (GDP) não estejam inteiramente esclarecidos, há indícios de que indivíduos que gaguejam mostram assimetrias anatômicas de áreas do cérebro relevantes para a fala, o que possivelmente interferiria na fluência (Jancke, Hanggi, Steinmetz, 2004). Têm sido relatadas atipias anatômicas do planum temporale em alguns adultos que gaguejam (Foundas, Bollich, Feldman, Corey, Hurley, Lemen, Heilman, 2004), bem como anomalias anatômicas em áreas perisilvianas e em áreas pré-frontais e sensoriomotoras (Jancke, Hanggi, Steinmetz, 2004).

Dentre as assimetrias anatômicas mais consistentes achadas no cérebro humano estão o córtex pré-frontal direito maior que o esquerdo e lobo occipital esquerdo maior que o direito. Essas assimetrias não foram observadas em cérebros de adultos que gaguejam, sendo relatados déficits no processamento de linguagem desses indivíduos associados à redução do volume pré-frontal e occipital (Foundas, Corey, Angeles, Bollich, Crabtree-Hartman, Heilman, 2003).

Resultados de estudos de neuroimagem funcional sugerem ainda que a GDP poderia estar relacionada à redução da dominância do hemisfério esquerdo, o que acarretaria uma hiperativação das áreas motoras e pré-motoras do hemisfério direito (Sommer, Koch, Paulus, Weiller, Buchel, 2002). Esta mesma constatação é relatada por alguns autores como uma anomalia da substância branca que interliga as áreas de fala do hemisfério esquerdo e que produziria hiperatividade de áreas homólogas do hemisfério direito a fim de compensar a deficiência estrutural das conexões do hemisfério esquerdo (Neumann, Preibisch, Euler, von Gudenberg, Lanfermann, Gall, Giraud, 2005).

Pesquisas de magnetoencefalografia exibem resultados que mostram profundos distúrbios de timing entre áreas envolvidas na preparação e na execução da fala no hemisfério esquerdo, sugerindo que GDP pode estar relacionada à insuficiência da comunicação neuronal, cuja possível causa seria uma ruptura dos tratos de substância branca, a qual levaria a uma alteração do tempo de ativação de áreas cerebrais relevantes para a fala e a um mecanismo compensatório de superativação no hemisfério direito (Sommer, Koch, Paulus, Weiller, Buchel, 2002).

Considerando que os estudos mencionados relacionam a presença de GDP a disfunções e/ou atipias anatômicas do sistema nervoso central, é inevitável pensar se essas disfunções poderiam ser detectadas pelo exame comportamental que avalia as funções auditivas centrais.

Na literatura corrente há trabalhos que mostram esta relação. Um estudo feito com a aplicação do teste dicótico consoante-vogal em homens canhotos que gaguejam e em mulheres destras que gaguejam apontou que ambos os grupos apresentavam processamento auditivo atípico, apesar de diferentes entre si. Os padrões de respostas encontrados em homens canhotos que gaguejam sugeriram que o lobo temporal direito teria sido importante na percepção da fala, indicando dominância hemisférica mista e não só de hemisfério esquerdo, o que é esperado para a maior parte dos indivíduos destros. Esses indivíduos canhotos mostraram-se mais eficientes na mudança de foco atencional tanto para a orelha direita como para a esquerda, sugerindo que o hemisfério direito, que é o dominante para o controle da mudança de foco atencional, deveria estar ativado para aquela tarefa. Já as mulheres destras que gaguejam apresentaram mais erros de percepção e tiveram dificuldade para acompanhar a mudança do foco atencional. Seguindo o mesmo estudo, os homens destros que gaguejam não apresentaram resultados diferentes dos homens destros que não gaguejam, mostrando talvez que, apesar da dominância hemisférica desempenhar um papel importante na presença de gagueira, não pode ser considerada a única causa deste comprometimento. Mulheres canhotas que gaguejam não foram incluídas neste estudo (Foundas, Corey, Hurley, Heilman, 2004).

Um ensaio clínico com quatro indivíduos do gênero masculino canhotos que foram submetidos a uma avaliação comportamental das funções auditivas centrais que incluiu tarefas monoaurais de baixa redundância, de integração binaural, de padrões temporais e dicóticas mostrou resultados que evidenciaram o fato de que indivíduos que gaguejam apresentavam diferentes disfunções auditivas centrais, oferecendo suporte à visão de que a GDP não está correlacionada a somente um tipo de organização funcional do sistema nervoso (Misorelli, Sanchez, Alvarez, 1999).

A habilidade de perceber prosódia foi estudada em 10 indivíduos que gaguejam e em 10 indivíduos que não gaguejam por meio da aplicação de tarefas dicóticas e tarefas não-verbais. A análise dos resultados indicou diferença significante entre os dois grupos no Staggered Spondaic Word Test (teste SSW) e no subteste no stress do Sentence Disambiguation Task (Blood, 1996), onde sentenças similares são faladas com diferentes curvas melódicas.

Num estudo bastante recente comparou-se o desempenho de adolescentes que persistiram em gaguejar com adolescentes que deixaram de gaguejar em tarefas com ruídos mascarantes e conclui-se que o desempenho em tarefas com ruído de fundo na adolescência é um fator que distingue falantes que persistem em gaguejar daqueles que se recuperam (Howell, Davis, Williams, 2006).

Ao examinarmos esses trabalhos de pesquisa, nos damos conta de que, apesar de não terem sido verificados padrões característicos de respostas na avaliação das funções auditivas centrais em indivíduos que gaguejam, foram encontradas, na avaliação, informações importantes sobre o funcionamento das vias auditivas centrais, que podem ser determinantes na escolha dos planos de reabilitação.

De acordo com as pesquisas, adultos que apresentam GDP e anatomia atípica do planum temporale mostraram melhora na fluência com o uso da estratégia de feedback auditivo com atraso (delay) (Foundas, Bollich, Feldman, Corey, Hurley, Lemen, Heilman, 2004) e 12 semanas de terapia de modelagem da fala. Observou-se maior ativação em regiões de fala e linguagem no lobo frontal e áreas temporais dos dois hemisférios, particularmente mais pronunciadas do lado esquerdo, o que sugere que mecanismos terapêuticos podem remodelar a circuitaria do cérebro (Neumann, Preibisch, Euler, von Gudenberg, Lanfermann, Gall, Giraud, 2005).

Um dos objetivos da avaliação comportamental das funções auditivas centrais é avaliar a maneira pela qual o indivíduo ouve a informação, atenta a ela, a memoriza e programa uma resposta; em outras palavras, caracterizar a circuitaria auditiva do cérebro. Se assim é, por que tão poucas fonoterapeutas brasileiras utilizam esta ferramenta para a caracterização desse comprometimento da fluência da fala?

Em 500 exames realizados num centro de diagnóstico durante os seis últimos anos, apenas cinco referiram-se a indivíduos que gaguejavam. Urge refletir sobre este dado, avaliar os índices de sucesso e rever as posições terapêuticas.

Cabe, à guisa de finalização, uma questão: ” não deveríamos implementar a avaliação dos nossos pacientes que gaguejam? ”

* Ana Alvarez: doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
* Maura Lígia Sanchez: Mestre em Ciências Otorrinolaringológicas UNIFESP – EPM