Causas

Origem da gagueira sob a perspectiva linguístico-discursiva

por Nadia Azevedo

A criança pequena passa por um processo natural de gagueira, em que selecionar palavras em um (já vasto) repertório lexical conduz a repetições de sílabas e palavras, prolongamentos de sons e hesitações.

É possível realizar uma analogia da gagueira inicial da criança ao ato motor. Quando a criança começa a andar, cai freqüentemente, o que, geralmente, é compreendido pelos pais como parte integrante do processo de locomoção. Aos poucos, ela vai amadurecendo e, logo, é capaz de correr, saltar e pular. Já com relação à linguagem gaguejada, em sua fase considerada natural, como nomeia Friedman (2004), a família, muito comumente, passa a identificar a criança como gaga, angustia-se e cobra dela uma postura lingüística incompatível para aquele momento, como podemos constatar no discurso de mães de crianças nomeadas como gagas, descrito em Azevedo (2000) e Azevedo e Freire (2001). Poderia esta gagueira natural deslocar-se para uma gagueira? Os discursos de pessoas com gagueira e de seus pais, a que temos acesso na clínica fonoaudiológica nos dizem que sim.

Desta forma, a partir da perspectiva lingüístico-discursiva, pretendemos lançar um olhar sobre a discutida e controversa origem da gagueira e, para isso, alçamos o Projeto Interacionista em Aquisição de Linguagem e, logo em seguida, a Análise do discurso de linha francesa (AD), procurando evidenciar esta discussão.

Neste sentido, inicialmente, indicamos, sinteticamente, a interpretação de Lemos (1999) sobre a noção de “erro” na aquisição de linguagem, a partir da concepção de posições ocupadas pela criança, com o objetivo de começar a discutir a origem da gagueira.

Para encaminharmos a discussão, recorremos à aquisição de linguagem, em que Lemos (1999) procura contrapor os processos metafóricos e metonímicos à visão desenvolvimentista da Psicologia. Observa-se que na primeira posição, a criança encontra-se circunscrita à fala do outro? na segunda posição, a criança já é um falante submetido ao movimento da língua (é quando ela fala comei, porque existe cantei, por exemplo)? na terceira posição, configura-se um deslocamento do sujeito falante em relação à sua fala e à do outro – é o momento das auto-correções, substituições e do seu efeito no outro, que pode tomá-las como gagueira. Assim, é importante esclarecer que nem sempre o assemelhamento à linguagem se faz conforme o esperado, conforme atesta Freire:

Pode-se pensar que a interpretação da fala da criança pelo outro nem sempre se apresenta com os mesmos efeitos, ou seja, pode caminhar em direções diferentes daquelas observadas pelos estudos em aquisição de linguagem. Quero dizer que a interpretação coloca em cena não qualquer adulto e qualquer criança, mas um certo adulto e uma certa criança (FREIRE, 2000, p. 05).

Acreditamos que a terceira posição da curva-em-U analisada por Lemos (1999) é um lugar interessante para se pensar a origem da gagueira, porque nela é observado que as crianças apresentam hesitações, repetições de sílabas e palavras, prolongamentos de sons, pois estão submetidas ao movimento da língua e da fala do outro, o que pode gerar um efeito de gagueira, conforme discutido em Azevedo (2000).

O adulto (família ou escola), muitas vezes, interpreta a fala da criança, nesta terceira posição, como gaguejante. É comum, neste caso, um discurso autoritário, que situa a criança em uma relação de ordem, de cima para baixo. O discurso do adulto é impregnado de ausência de polissemia: Fale devagar! Respire fundo! Pense antes de falar!. A fala do adulto não situa a criança na direção do seu erro, mas parece conduzi-la a identificá-lo em qualquer lugar do seu corpo, nela toda. O discurso autoritário é monossêmico, não traz reversibilidade e, neste caso, a criança pode não compreender o lugar do “erro” e passar a modificar a sua fala. Neste sentido, considerando a instituição como a que outorga os dizeres e exerce o poder, segundo as concepções foucaultianas, compreendemos a instituição “escola” e a instituição “família” como elementos possíveis de atuação significativa no desenvolver contínuo e agravante da gagueira. Neste caso, o efeito do outro (interlocutor) na criança pode deslocá-la a recusar-se a falar, a utilizar estratégias variadas, como bater os pés, as mãos, na boca, ou canalizar a tensão trazida pela possibilidade discursiva para outro órgão do corpo, ou mesmo substituir palavras por outras que considera mais fáceis. A partir daí, de sujeito falante assemelhado ao outro, depara-se com a diferença, o não-assemelhamento, podendo passar a sujeito-gago, silenciado pelo outro, conforme analisamos em trabalho anterior (AZEVEDO, 2000).

É importante esclarecer que esta é uma possibilidade de se compreender um processo de aquisição de linguagem peculiar, interpretado pelo interlocutor como gagueira. Não é nossa intenção, neste momento, estabelecer uma relação de causalidade, uma vez que a linguagem é sobredeterminada, não trazendo em si uma relação causa-efeito, mas levantar uma possível questão, já que há uma dissonância entre os vários discursos, nos estudos específicos da área.

Nadia Pereira Gonçalves de Azevedo
Fonoaudióloga, com especialização em Patologias de Linguagem; Mestre em Fonoaudiologia pela PUC – São Paulo (2000) e doutoranda em Lingüística pela UFPB desde 2003 (já qualificada e em fase de defesa de tese); realizou dissertação de mestrado e tese de doutorado sobre Gagueira. Professora da graduação em Fonoaudiologia da Unicap desde 1981 e da pós-graduação em Linguagem da Unicap (desde 2003) e da pós-graduação em Linguagem da FIR (2006). Entre outras disciplinas, professora de “Gagueira” na Graduação em Fonoaudiologia e pós-graduação em Linguagem.

Referências:
AZEVEDO, N. P. S. G. “Uma análise discursiva da gagueira: trajetórias de silenciamento e alienação na língua”. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Fonoaudiologia) – PUC-SP, 2000.
AZEVEDO, N. P. S. G.; FREIRE, M. R. “Trajetórias de silenciamento e aprisionamento na língua: o sujeito, a gagueira e o outro”, In: FRIEDMAN, S.; CUNHA, M.C. (Orgs) Gagueira e subjetividade: possibilidades de tratamento. São Paulo: Artmed, 2001.
FREIRE, R.M. O diagnóstico nas alterações da linguagem infantil. São Paulo, 2000 (Mimeogr.).
FRIEDMAN, S.Fluência: um acontecimento complexo. In: Lopes DMB, Limongi SCO, editores. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Editora Rocca, 2004.
LEMOS, C.T.G. Processos metafóricos e metonímicos? seu estatuto descritivo e explicativo na aquisição da língua materna, São Paulo, 1999 (Mimeogr.).