Causas

Causas neurofisiológicas da gagueira

Como pessoa que gagueja, sempre quis saber quais seriam as causas da gagueira. Como fonoaudióloga, tomei contato com as mais diversas teorias. A hipótese neurofisiológica do envolvimento dos núcleos da base na origem da gagueira é a que considero mais adequada, tanto como pessoa que gagueja (porque contextualiza muito bem diversas experiências pessoais), quanto como fonoaudióloga (porque une ciência básica e aplicada).

Os núcleos da base são cinco conjuntos de neurônios situados abaixo do córtex cerebral: núcleo caudado, putâmen, globo pálido, substância negra e núcleo subtalâmico. Os núcleos da base são particularmente interessantes, porque influenciam diversos comportamentos: a) motor, auxiliando, por exemplo, na temporalização dos movimentos; b) cognitivo, auxiliando, por exemplo, na aprendizagem; c) emocional, interferindo, por exemplo, na resposta de congelamento (freezing). A Figura 1 mostra uma vista panorâmica dos núcleos da base.

Figura 1: Vista panorâmica dos núcleos da base.
Fonte: http://www.uni.edu/walsh/basalganglia-2.jpg

 

No encéfalo, existem dois sistemas pré-motores: o medial e o lateral. O sistema medial é formado pelos núcleos da base e pela área motora suplementar. O sistema lateral é formado pelo córtex pré-motor lateral e pelo cerebelo. O sistema medial entra em ativação quando se trata de fornecer sinais de disparo para movimentos automatizados e que necessitam de pistas internas. O sistema lateral entra em ativação quando se trata de fornecer sinais de disparo para movimentos pouco automatizados e que necessitam de pistas externas. O sistema medial é o mais ativo durante a fala espontânea.

A hipótese neurofisiológica propõe que a disfunção central na gagueira seja uma diminuição na habilidade dos núcleos da base para produzir pistas temporais. Em uma seqüência motora aprendida, a área motora suplementar ativa o início do movimento; os neurônios do globo pálido devem disparar logo antes do final de cada submovimento. Este disparo é uma pista interna que marca o final de um submovimento da seqüência motora e serve como gatilho para a área motora suplementar passar para o próximo submovimento da seqüência. Na gagueira, o primeiro submovimento da palavra pode ser iniciado, mas os núcleos da base falhariam em gerar as pistas internas para marcar o final do primeiro submovimento, resultando no rompimento da seqüência. Por exemplo, a área motora suplementar inicia a pronúncia do “b-” da palavra “brasileiro”, o qual deve durar um determinado tempo (aproximadamente 60 milissegundos). Logo antes do final do “b-“, o globo pálido deve sinalizar o término deste submovimento para que a área motora suplementar possa dar continuidade à seqüência “-rasileiro”. Porém, quando o globo pálido não sinaliza o término, o “b-” é bloqueado/travado/alongado e só será liberado quando o globo pálido gera a pista interna. Desta forma, o problema na gagueira não estaria no primeiro som ou na primeira sílaba da palavra, mas no restante da palavra, que não seria liberado no tempo adequado.

A hipótese neurofisiológica consegue explicar as melhoras dramáticas que ocorrem na fluência sob determinadas condições, como por exemplo: no canto, na leitura em coro e na imitação de um sotaque. Estas ocorrências indicam que a gagueira não é resultado de alguma dificuldade motora geral para a fala, mas de um mecanismo específico.

– Na leitura em coro, a voz da outra pessoa fornece pistas externas para a temporalização adequada de cada som ou sílaba. Neste caso, é o cerebelo que extrai as informações temporais do estímulo auditivo (a voz da outra pessoa).
– Na imitação de um sotaque, é o córtex pré-motor lateral que gera pistas temporais internas para a temporalização dos sons, porque tais movimentos não estão automatizados.
– Durante o canto, a temporalização dos sons é gerada basicamente pelo sistema pré-motor lateral do hemisfério direito, porque o cérebro precisa gerar uma representação interna da temporalização dos sons ou das sílabas a fim de garantir o ritmo musical.

Desta forma, as melhoras dramáticas na fluência nas situações citadas deve-se à utilização de estruturas que estariam preservadas na pessoa que gagueja (cerebelo, córtex pré-motor lateral e hemisfério direito) e não à utilização dos núcleos da base, que estariam comprometidos. Assim, pela hipótese neurofisiológica, o fato de a gagueira diminuir drasticamente em determinadas situações não é indicativo da inexistência de uma base orgânica para o distúrbio. Pelo contrário, é um indício que aponta para o comprometimento dos núcleos da base, tendo em vista que outras doenças que comprometem os núcleos da base apresentam padrões semelhantes de melhora.

Determinadas emoções também conseguem melhorar a fluência das pessoas que gaguejam, como, por exemplo, a sensação de confiança, a raiva e a paixão. Especula-se que tais emoções influenciem diretamente a liberação de dopamina, o neurotransmissor dos núcleos da base. Assim, emoções que influenciam o aumento tônico da liberação de dopamina, e não a liberação fásica, facilitariam o início e a seqüenciação dos movimentos da fala; emoções que diminuem a liberação de dopamina dificultariam a execução dos movimentos da fala. Desta forma, ao contrário do que se pensa, cogitar a hipótese neurofisiológica da gagueira não implica deixar as emoções de lado. As emoções também têm seu lugar nesta hipótese neurofisiológica.

Clinicamente, a gagueira apresenta semelhanças com outras doenças dos núcleos da base. Por exemplo:

a) As distonias ocupacionais afetam tarefas motoras seqüenciais e altamente automatizadas, como digitar ou tocar um instrumento musical. Em algumas pessoas, estas habilidades motoras, refinadas através de anos de prática e executadas automaticamente, de repente começam a requerer esforço consciente para sua execução. Involuntariamente, ocorrem contrações dos músculos agonistas e antagonistas ao movimento. Assim como a gagueira, a distonia ocupacional é altamente específica à tarefa, ocorrendo, por exemplo, ao digitar, mas não ao utilizar as mãos para outras tarefas.
b) Os tiques motores e vocais são movimentos involuntários, mas a pessoa afetada consegue exercer algum grau de controle sobre os tiques por um certo intervalo de tempo; além disso, os tiques tendem a piorar sob o efeito do estresse. Basicamente, os mesmos efeitos são observados na gagueira.
c) Na doença de Parkinson, também ocorrem dificuldades para iniciar e executar seqüências de movimentos, as quais melhoram com pistas auditivas e visuais externas.

As pessoas que gaguejam costumam elaborar estratégias para tentar compensar as dificuldades de automatização da fala, desenvolvendo um maior controle consciente do início da fala (por exemplo: utilizando palavras e sons de apoio, inserindo pausas antes de palavras gaguejadas, etc.). A ativação cerebral se modifica durante o emprego de estratégias compensatórias: ocorre ativação bilateral do córtex pré-motor lateral, do cerebelo, da área motora suplementar e do córtex cingulado anterior (com uma leve dominância do hemisfério direito) e ativação à direita da ínsula e do giro supramarginal. Todas essas ativações são conseqüências do uso de estratégias compensatórias não-automáticas para melhorar a fluência e não causas da gagueira. Do ponto de vista neurofisiológico, o uso de estratégias compensatórias não é, necessariamente, ruim.

Esta hipótese neurofisiológica sinaliza com diversas possibilidades para o tratamento da gagueira. São elas:

– Aprimorar a automatização dos movimentos de fala através da prática de estratégias motoras que auxiliem na geração de pistas internas mais fortes nos núcleos da base, como, por exemplo, a lentificação e a suavização da fala.
– Reelaboração de respostas emocionais a fim de diminuir o medo e aumentar a auto-confiança, tendo em vista que os núcleos da base participam na gênese destas emoções e/ou recebem influência direta do sistema límbico.
– Uso de aparelhos de feedback auditivo a fim de romper o processamento automático da fala, utilizando o cerebelo para capturar pistas auditivas externas.
– Uso de medicamentos que modifiquem a liberação de dopamina nos núcleos da base (direta ou indiretamente).
– Combinação entre as estratégias citadas acima.

Sandra Merlo é pessoa que gagueja, fonoaudióloga pela USP, mestre em Lingüística pela UNICAMP, fundadora e diretora científica do “Instituto Brasileiro de Fluência – IBF”, fundadora da “Associação Brasileira de Gagueira – ABRA GAGUEIRA”, fonoaudióloga clínica da Linguagem Direta, autora de artigos científicos nacionais e internacionais.