Causas

Considerações sobre a causa da gagueira na Clínica de Linguagem

Qual é a causa da gagueira? Tal pergunta requer uma resposta que não pode ser “ainda não sabemos”; a maioria da comunidade científica acredita que…”. O enfrentamento dessa questão exige um posicionamento: todo conhecimento está comprometido com uma maneira de explicar os fenômenos e de compreender o homem no mundo. Sendo assim, por mais objetivo e sistematizado, o conhecimento científico não é neutro, porque é historicamente condicionado, produzido sob condições sócio-político-culturais.

Então, para falarmos sobre a causa da gagueira devemos, primeiramente, situarmos o lugar de onde falamos. Na Fonoaudiologia temos dois paradigmas atuantes que determinam diferenças na forma de entender, pesquisar e tratar os casos clínicos. Tais paradigmas funcionam como grandes “guarda-chuvas” sob os quais se abrigam teorias diversas que, acabam estabelecendo diferenças substanciais na forma de conceber o sujeito e a linguagem, esta o objeto do campo fonoaudiológico.

O primeiro paradigma, o cartesiano-positivista, rege a clínica tradicional, e considera o fator genético/hereditário ou inato/congênito como a base etiológica da gagueira, desencadeada por fatores precipitantes do ambiente. Tal paradigma, quando levado a um determinismo estrito, defende que se não soubermos a causa (orgânica) da gagueira não poderemos predizer seu efeito e, consequentemente, atingir a sua cura.

Mas, a comprovação científica da(s) causa(s) da gagueira – se genética; se por um déficit funcional do cérebro; etc – está longe de resolver uma questão fundamental: o corpo é físico, mas também simbólico. A gagueira diz do sujeito por meio do corpo, ou seja, tem sua inscrição no sujeito para além da materialidade corporal.

Mesmo que os estudos científicos possam identificar no corpo o sítio das alterações da fluência; mesmo que a medicina possa prescrever uma medicação para alterar as condições da fala com rupturas, ainda assim, haverá algo de inédito nesse sintoma, porque ele é marca de singularidade e requer decifração.

É por essa via de conhecimento, comprometido com uma visão de linguagem, que o paradigma histórico-dialético remete a causa da gagueira para o seu funcionamento discursivo. Implica, portanto, em entender que os aspectos genéticos e/ou neurofisiológicos, que possam ser corroborados pela ciência médica, não fecham a questão do gaguejar. Seria um reducionismo, tentar patentear a verdade por meio das descobertas biológicas do campo médico.

A compreensão do funcionamento discursivo extrapola a materialidade do corpo (no caso, a fonoarticulação) e implica entender que a origem da gagueira é marcada pela sobre-determinação da linguagem. É na e pela trama discursiva que se enredam o sócio-cultural, o corpo, a fala, a ideologia, o psiquismo, constituindo o sujeito.

No contexto desse paradigma, lidamos com um sujeito que constrói sentidos na medida em que é interpretado pelo Outro. Essa relação não é natural, mas atravessada pela ideologia, que na gagueira foi denominada Ideologia do bem falar (Friedman, 1986, 1994). Esta ideologia, marca uma posição-sujeito de mau-falante frente a um Outro que, por assumir uma posição de sujeito “normal”, é interpretado como um falante idealizado, aquele que apresenta uma fluência absoluta ou qualitativamente melhor do que a fluência do sujeito que gagueja. Ambos – falante e ouvinte – estão sob efeito da língua e da história, estão submetidos, assujeitados (termo utilizado na Análise de Discurso – escola francesa).

Assim, sob o paradigma histórico-dialético, existem campos teóricos que propõe essa forma de compreensão da gagueira: a Psicologia Social; a Análise de Discurso – linha francesa; a Psicanálise; o Projeto Interacionista em Aquisição de Linguagem. Estes campos guardam suas especificidades e não podem ser aproximados aleatoriamente. Mas deles se pode tirar uma conclusão: a causa de um sintoma de linguagem – no caso, a gagueira – não é dada pelas condições orgânicas (e nem se lamenta a impossibilidade de sua detecção) isoladas de outros aspectos que constituem o humano ou superestimadas em seu pode de circunscrição do sujeito.

Além do mais, re-interando o foi que dito no início deste texto, conhecimento científico é conhecimento comprometido, “(…) quando pergunta não tem todas as respostas, e quando responde deixa tanto mais perguntas” (Demo, 2000). Essa é uma condição saudável do conhecimento científico, porque impede que ele se torne dogma, perdendo assim, sua capacidade de transformação daquilo que comparece à cena clínica.

Polyana Silva de Oliveira:  fonoaudióloga (4029/SP), mestre em Fonoaudiologia: Clínica Fonoaudiológica; Especialista em Linguagem; membro da SBFa e da diretoria do Comitê de Fluência da Fala (gestão 2006/2007); Fonoaudióloga Clínica e Educacional; colaboradora do site Gagueira: Novos Paradigmas.