Tratamentos
Ressignificar a Imagem de Falante
De 16 a 22 de outubro de 2005
Desde que me formei em Fonoaudiologia, em 1974, tive especial interesse em tratar de pessoas com gagueira. Nesses tratamentos, chamava-me a atenção o fato de que todas as pessoas que atendia, sob certas condições (por exemplo: quando falavam para si mesmas; quando cantavam), também eram fluentes. Considerei esse fato como sinal de que a competência de falante dessas pessoas, do ponto de vista biológico, era íntegra e de que a produção de gagueira estava relacionada ao modo como seu psiquismo funcionava sob determinadas condições sociais. Esse fator direcionou meus estudos para entender melhor a manifestação da gagueira e sua possibilidade de tratamento, ao campo da Psicologia Social.
Nesse campo encontrei conhecimentos capazes de sustentar pesquisas que relacionassem o funcionamento do organismo e do psiquismo na produção de fala e de gagueira aos valores, mitos e crenças que perpassam a sociedade e a cultura. A vivência com meus pacientes me sugeria que esse conhecimento seria capaz de explicar o surgimento e o desaparecimento da gagueira em diferentes situações de fala, e, assim, evoluir na compreensão dos determinantes da fala gaguejada e de suas possibilidades de tratamento.
Essas pesquisas têm mostrado que certos valores e crenças que perpassam as relações de comunicação estabelecidas entre as pessoas, deixam marcas no funcionamento psíquico e essas marcas têm efeitos no funcionamento discursivo e no corpo.
A partir da análise do discurso de pessoas que gaguejam, constatei que esses valores e crenças dizem respeito a uma ideologia de bem falar. A partir dessa ideologia, que incide no senso comum, acredita-se que a fluência normal é absoluta, ou seja, que não contem trechos disfluentes ou gaguejados. Isso favorece reações de não aceitação de tais trechos, especialmente na fala infantil, por serem interpretados como problemáticos.
Esse tipo de interpretação pode deixar marcas no funcionamento discursivo e para compreendê-las, é preciso entender que:
1) a fluência na fala acontece de forma automática e espontânea, ou seja, o falante sabe falar, mas não sabe como o faz;
2) quando fala, sua atenção está conectada ao sentido daquilo que está dizendo e esse sentido guia a seqüência de sua fala.
As reações de não aceitação do padrão disfluente de fala tem efeito no funcionamento discursivo, porque desviam a atenção do falante do sentido para a forma do dizer e porque o levam a querer controlar a forma espontânea de falar para ser aceito socialmente. A tentativa de controlar o espontâneo leva o falante a prever os lugares em que a gagueira ocorrerá. Antecipar os lugares de ocorrência da gagueira na fala que ainda não foi falada, dá ao falante a ilusão de poder controlar a fluência e, desse modo, ele se permite continuar falando. Com isso, freqüentemente cria truques para “driblar” a gagueira que havia previsto, como trocar palavras; inspirar brevemente antes de uma palavra temida, etc. Essa forma de funcionamento gera rupturas bizarras na fluência, gestos de fala tensos e tensões no corpo. Isso aumenta ou mantém as reações de não aceitação, bem como as tentativas de controlar o espontâneo, aprisionando o falante a essa forma de funcionamento.
Tais condições de funcionamento discursivo por terem seu início na infância, podem levar o falante a construir uma imagem de mau falante. A imagem de mau falante constituída na subjetividade é a marca fundamental do funcionamento psíquico dos falantes gagos que venho tratando. Sempre que a situação de comunicação os leva a se preocuparem com sua imagem, antecipam a gagueira e, para escondê-la, tentam controlar o espontâneo. A conseqüência disso – como vimos – é ficarem aprisionados a uma fala com gagueira. Mesmo que os truques funcionem muito bem e “driblem” todas as gagueira previstas, internamente, sabem que não foram livres para falar as palavras que queriam. Já quando a situação de comunicação não lhes trouxer nenhuma preocupação com a imagem de si, não há antecipação da gagueira e conseqüentemente a fluência tem lugar.
A compreensão desse modo de funcionamento da gagueira sustenta uma proposta de tratamento apoiada em dois princípios: parar de tentar o espontâneo e aceitar a gagueira. Se o falante puder aceitar sua gagueira, cessará o efeito de tentar o espontâneo, os truques perderão o sentido e desaparecerão as tensões que o corpo apresenta ao falar.
Para conseguir isso, trabalho em duas vertentes: interação discursiva e abordagem corporal.
Por meio da interação discursiva entre paciente e terapeuta, trabalha-se na compreensão da lógica de funcionamento da fala fluente e da fala com gagueira, para que o paciente encontre as condições para sair do funcionamento gaguejante. O discurso do paciente sobre sua gagueira é matéria prima para revelar a ele esse funcionamento. A auto-observação é a forma de sair dele.
Por meio da abordagem corporal trabalha-se com o paciente a capacidade de falar sentindo os movimentos da fala e a partir dela:
a vivência sensorial da efetiva capacidade de falar espontânea e fluentemente;
a vivência sensorial dos controles possíveis na fala;
a capacidade de falar gerando confiança na fala.
Isso permite aceitar a gagueira e desmontar seu modo de funcionamento. A duração média desse tratamento é de um ano.
Com crianças, quando a avaliação mostra que a imagem de falante ainda não está constituída, o terapeuta interage com os pais, com a criança, com a escola e com todas as pessoas importantes na vida da criança, no sentido de impedir que tal imagem se constitua. Esse trabalho, frequentemente, pode ser efetivo com uma única sessão com os pais e a criança. Sempre, entretanto, são feitas tantas sessões quanto necessárias para que se possa modificar a forma de interpretar as disfluências infantis.
Resta considerar que a fala com gagueira não acontece somente sob as condições aqui descritas. Ela também pode decorrer sob condições estritamente orgânicas, como por exemplo nas assim chamadas disartria ou taquifemia. Sobre elas poderá incidir a ideologia de bem falar, levando ao funcionamento de fala aqui descrito. Nesse e em todos os casos, o tratamento proposto leva o paciente a sentir e compreender sua efetiva capacidade de falar, que está limitada por suas condições orgânicas.
Silvia Friedman é fonoaudióloga (CRFa 4022/SP), doutora em Psicologia Social, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, responsável pelo setor de atendimento à gagueira da Clínica Escola CEFAC e organizadora de livro, autora de livro e de capítulos científicos.